quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Beira a cidade do futuro



Os recentes acontecimentos de violência nos arredores da Beira, despertaram-me os sentimentos e vem-me à  memória,  imagens daquela terra a quem os moçambicanos apelidaram cidade do futuro. Sempre ansiei conhecer aquelas paragens e a final do Campeonato Provincial de Futebol de 1975  agendada para lá, constituiu o mote para a viagem. Revivo a partida da capital, a partir do Bairro do Chamanculo em autocarro da Auto Viação Sul do Save às cinco horas da manhã. Comigo seguiam outros passageiros, irmanados pelo mesmo desejo. Depois do pequeno almoço em João Belo e um almoço super reforçado na Maxixe, prosseguimos a aventura rumo à segunda maior urbe de Moçambique. Já desgastados e com mais de vinte horas a rolar, chegamos antes do sol raiar sob a bênção da madrugada, ao terminal . Antes de retirar a bagagem, fiquei assim como  os restantes companheiros, rendidos ao encanto da imponente estação dos Caminhos de Ferro, uma verdadeira maravilha da arquitetura moderna, convenientemente iluminada , majestosa em qualquer lugar do planeta. Era a verdadeira ex-libris da Beira, local de embarque da  linha internacional que ligava à então Rodésia  (hoje Zimbaué).Depois foi  apanhar um táxi rumo ao Hotel Moçambique para tentar reparar o cansaço da jornada. Uma vez acordado e com a torreira do sol de Janeiro, quente e húmido como seria de esperar, nada melhor do que subir ao alto do hotel e lançar o olhar sobre aquela cidade, conquistada ao pântano pela persistência e engenho do homem. Esboçada  a partir da margem esquerda do Rio Pungué , abraçada pelo Índico, servia-se do Rio Chiveve  um riacho ligado a um braço de mar destinado a travar o movimento intruso das marés. Lá estava a velhinha ponte metálica com arcos,(hoje desmantelada) a unir entre margens a cidade, abaixo do nível das águas do mar. O seu porto marítimo era um dos mais importantes de África Oriental, com ligações a todas as rotas do mundo. A Beira era uma cidade plana com artérias bem delineadas e arborizadas , que enquadrava edifícios de porte considerável concebidos por arquitetos visionários, com habitações de traça colonial , casas de madeira e zinco ou de alvenaria. Era uma terra com uma mística muito especial, onde o bairrismo popular simbolizava o fervor dos seus habitantes. Não passava despercebida a simbiose de culturas expressas nas raças e crenças dos beirenses, realçada com a presença significativa da comunidade sino-asiática, descendentes  do grande contingente oriundo de Singapura, Macau, Cantão e Hong-Kong então contratados nos finais do século XIX, para a construção de portos e caminhos de ferro, em Moçambique. Tentei aproveitar o melhor possível  os quatro dias reservados para a visita, percorrendo a pé e na companhia de colegas, as referências da cidade, onde chamava a atenção as ruas comerciais a lembrar a longínqua Índia e Paquistão, pejada de comerciantes a quem se adivinhava a perspicácia para o negócio, onde o cliente não podia abandonar a loja sem comprar, bijutarias, artigos de moda ou especiarias asiáticas.
Na Ponta Gêo ,lá estava o Grande Hotel excêntrica obra de arquitetura, parecendo já adivinhar a condenação a que foi sujeito. Passagem obrigatória era também pelo Largo Caldas Xavier (hoje suponho Praça do Metical) onde estava localizado o edifício do BNU. Já muito perto da zona da Baixa, uma paragem para um  delicioso sumo de laranja servido no Salão de Chá Alpino, também conhecido pela qualidade dos seus gelados. As visitas noturnas ficaram marcadas para a zona do Maquinino , lugar de diversão dos locais e turistas sobretudo rodesianos, para uma escapadela até ao clube noturno Moulin Rouge, simbolizado pelo tradicional moinho caraterizado pelo tom  vermelho , numa alusão ainda que distante do famoso cabaré, que animava as noites boémias de Paris. A Beira era também conhecida pela qualidade dos seus mariscos e para saciar o apetite pelos crustáceos , nada melhor do que abancar na esplanada do Restaurante Chinês e aguardar pela travessa dos camarões bem fritos e dos caranguejos preparados com primor, onde ao calor da noite se juntou o ardor do piri-piri, rapidamente abafado com a ingestão de umas Manicas(cerveja e boa) bem fresquinhas. O dia de Domingo cheirava já a despedida e bem cedo nos encaminhamos para a Praça do Município, centro nevrálgico  da cidade e onde os beirenses se aglomeravam, comentando em pequenos grupos as inquietações quanto ao futuro; a independência caminhava a passos rápidos e também a final da tarde desportiva. O Café Riviera era uma referência daquele espaço, afamado pelas conversas de pé de orelha. Após o almoço, começou a romaria até ao Campo do Ferroviário, onde se iriam defrontar  a formação da casa e o Sporting Clube de LM. A lotação esgotou, a emoção transbordou e os golos não faltaram. Para quem já não se lembre, os ”locomotivas” beirenses foram os últimos campeões da Província( depois viria o Moçambola) derrotando os “leões” laurentinos por dois a zero. No final da partida, um autêntico festival quase carnavalesco e preparado o cortejo automóvel  com as buzinas  no limite, para comemorar a conquista do  troféu . O pôr do sol ditava já o fim do dia de descanso e a noite caiu sorrateira sobre a cidade. Dispararam os néones e a iluminação artificial dando-lhe um colorido muito especial a que se associou aquele luar de prata com todo o esplendor a resgatar a penumbra que lhe pertence. Para nós era já hora de preparar o regresso. Segunda feira após o almoço, o grupo excursionista concentrou-se junta à gare ferroviária, onde se encontrava atempadamente o potente Scania que nos transportaria de regresso a Lourenço Marques. Várias aceleradelas contínuas, davam o sinal de partida. Para trás ficava já a cidade do futuro, rodeada de água e tal como a interpretava o saudoso João Maria Tudela, a Beira era indiscutivelmente noiva do mar.

Manuel Terra